Em 13 de maio comemora-se o Dia da Abolição da Escravatura, ou da assinatura da Lei Áurea.
Falar desse tema sempre levanta alguns questionamentos: a data foi ou é importante para ser comemorada? O que foi a escravidão? Por que ocorreu a Abolição? E tantas outras questões vão surgindo, pois o tema é bastante expressivo e polêmico dentro da história do Brasil.
Em primeiro lugar, é necessário que se diga que “comemorar” significa manter viva a memória individual ou coletiva. Todo evento histórico precisa ser lembrado, com uma função didática, para que as sociedades tenham a oportunidade de refletir sobre o passado e retirar dele exemplos a serem seguidos ou evitados a todo custo, valorizado os acertos e nunca repetindo os erros, especialmente no que se refere aos direitos de cidadania.
Há quem considere o “13 de Maio” uma data sem motivos para comemorações, pois após a Abolição não houve política voltada à inserção igualitária dos libertos, de modo que estes permaneceram à margem da sociedade, lutando pela integração com seus próprios recursos e sofrendo as mais duras formas de preconceito e exclusão.
Ainda que estes questionamentos sejam pertinentes e mereçam ser respondidos, esta é uma indagação sobre o período posterior à Abolição, o que não desqualifica o evento histórico propriamente.
Em segundo lugar, deve-se fazer uma análise retrospectiva, buscando os elementos e os significados do contexto histórico para que se possa compreender, nesse caso específico, o processo que resultou no fim da escravidão.
Para que se tenha uma breve imagem do que ocorria antes da abolição, é preciso lembrar que desde a Antiguidade as sociedades ocidentais consideravam justa a propriedade de escravos. Na Idade Moderna, entre os séculos XV e XVIII, a escravidão foi novamente um instrumento de produção de riquezas, pela exploração do homem pelo homem: em 1452, o Papa Nicolau V autorizou a redução dos africanos à condição de escravos para cristianizá-los; em 1534, as Cartas do Foral, que distribuíam as terras brasileiras em capitanias hereditárias, permitiam a escravização dos indígenas e seu uso como parte do pagamento de impostos; em 1559, um Alvará da Coroa Portuguesa autorizou os colonizadores a escravizar africanos em terras brasileiras. Enfim, trata-se de um longo e processo que envolve toda a história da humanidade.
As Ordenações Filipinas, leis portuguesas vigentes também no Brasil colonial, a partir de 1603 regulamentavam a propriedade de escravos e os tipos de castigo, como o retalhamento com faca, a cauterização com cera quente, o uso do chicote de couro duro, palmatória, argolas, pelourinho.
Após a Independência do Brasil, a Constituição do Império, de 1824, manteve o regime escravista, mas no Art. 179 afirmava que a lei seria igual para todos e que seriam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis. Contudo, o Código Criminal do Império, vigente de 1830 a 1886, considerava justificáveis os castigos “que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos e os mestres a seus discípulos”. Ou seja, os princípios legais eram contraditórios e o fundamento de igualdade constitucional era apenas formal e não efetivo.
Desse modo, permaneceram as formas degradantes de trabalho e punições físicas, com diferentes instrumentos de tortura, como, por exemplo, o ferro de marcar, ou ferrete, o ferro quente para marcar a pessoa com as iniciais do dono ou com a letra F, em caso de captura de fugitivos; a palmatória, ou férula, para punir pequenas faltas cotidianas; as gargalheiras, para punir fugas ou furtos; os troncos e algemas suspensas, para imobilizar e castigar fugitivos; o viramundo, que eram hastes de ferro para imobilizar mãos e pés; as algemas de pés com bola de ferro, para castigar e impedir a fuga; a cegonha, uma imobilização pernas e braços com algemas, madeira e grilhão; as máscaras de flandres, para punir por furto de alimentos, alcoolismo, ingestão de terra para suicídio ou tentativa de furto na mineração.
E tantos outros instrumentos de tortura, como o extrator de dentes, de madeira e ferro. Como disse o grande Gilberto Freyre: se a beleza dos dentes da escrava desagradava a “sinhá”, esta mandava arrancá-los.
Quando a Abolição foi declarada, tamanha era a revolta contra a escravidão que quase todos os pelourinhos foram derrubados, tendo permanecido intactos até hoje apenas os de Alcântara, no Maranhão, e de Mariana, em Minas Gerais.
Embora Portugal tenha sido o primeiro país colonialista a abolir a escravidão, em 1761, esta lei abrangia apenas os domínios portugueses na Europa e na Índia. No Brasil a escravidão permaneceu como base da economia tanto no período colonial, como no período imperial.
Houve tentativas de eliminação do tráfico de escravos: a Lei Feijó, de 1831, que considerava ilegal o tráfico de escravos para o Brasil; o Bill Aberdeen, de 1848, que proibia o tráfico no Atlântico; a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que mais uma vez proibia o tráfico. Entretanto, permaneciam as práticas do tráfico legal (entre as províncias) e o tráfico ilegal (no Atlântico).
Além disso, o poder público pouco ou quase nada se fez pela abolição da escravatura. Pode-se citar a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a do Sexagenário, de 1885, mas foram meros paliativos para adiar a abolição plena. A luta real deu-se pela movimentação da sociedade civil abolicionista e dos grupos afrodescendentes organizados, que se empenharam de todas as formas pela conquista da liberdade.
Embora muitos insistam em afirmar que a escravidão já havia praticamente sido abandonada em 1888, os dados estatísticos mostram que nos últimos anos do período escravista registrava-se, no Brasil, uma população de aproximadamente 10 milhões de habitantes, com quase 50% afrodescendentes e um milhão e meio de pessoas vivendo sob o regime escravo.
Um estudo interessantíssimo sobre as escrituras de compra e venda de escravos em Piracicaba, publicado por José Flávio Motta na Revista Brasileira de História, aponta que em 1854 havia 1.370 escravos (22% da população); em 1874, 5.627 (26% da população); em 1886, às vésperas da Abolição, 3.820 pessoas em condição escrava (11,6% da população).
Segundo os apontamentos de João Humberto Nassif, por ocasião da libertação dos escravos, em Piracicaba “os recém-libertos compareceram em massa à Igreja Nossa Senhora do Rosário, atual Igreja de São Benedito, para agradecer a grande conquista alcançada em 13 de maio de 1888”. Para nos aproximarmos do significado daquele momento, compreendendo-o minimamente, precisamos dimensionar o que aquelas pessoas estavam sentindo, suas esperanças, seus sonhos…
Assim, há toda uma trajetória que merece ser relembrada, para que as gerações futuras não percam de vista que a abolição foi uma conquista, resultado não meramente da assinatura da Lei Áurea, mas, sobretudo, da construção de mecanismos para uma sociedade livre, democrática e igualitária.

Texto: Profa. Dra. Marilda Soares
Data: 13 de maio de 2020
Publicado em: http://www.semac.piracicaba.sp.gov.br/cdcpn/?m=202005

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